segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O rompimento entre o realismo sobrenatural da fé e o realismo natural da inteligência humana no Concílio Vaticano II


“Nunca se saberá a magnitude, para a Igreja e para a humanidade, da catástrofe que uma gangue de padres conciliares provocou na inteligência sem rumo. Sabe-se que, por ordem de João XXIII, a preparação do Concílio deu-se segundo as normas tradicionais e conforme o vocabulário escolástico – forma evoluída de linguagem, própria à “metafísica natural do espírito humano”. Arrastada pela minoria “estruturada”, a maioria do Concílio recusou o método de apresentação e declarou-se a favor de uma formulação pretensamente mais acessível ao espírito moderno e ao aggiornamento solicitado pelo Papa. Parecia que se tratava tão-somente de uma simples mudança na apresentação da mensagem evangélica e do dogma. Até os padres mais apegados à tradição pareciam requisitar o preconizado retorno à linguagem bíblica – pelo menos em alguns setores, sobretudo na prédica. Desse modo, os girondinos do Concílio entregaram-se à tarefa sem peso na consciência, e as propostas foram passando como cartas debaixo da porta. Mas as cartas estavam recheadas de explosivos. Começamos a sentir os primeiros abalos causados pela deflagração do artefato.
Com efeito, não se troca de linguagem como de roupa. Decerto a língua é uma convenção. Na origem a linguagem é um sistema de expressão verbal do pensamento, composto de sinais artificiais inventados pelo homem. Mas no esforço de criar sinais, a inteligência humana teve a poderosa ajuda de sua natureza, que ordena a inteligência à realidade a que deve o ato corresponder para ser verdadeiro. Aqui como em tudo, a arte humana se une à natureza, sob pena de degenerar em puro arbítrio, cujo único significado vem da vontade subjetiva, cuja única satisfação é devida a si mesmo. A língua participa do dinamismo da natureza intelectual, que busca a verdade. Quanto mais se desenvolva essa natureza, mais a linguagem se abastecerá de significados objetivos. É o caso do grego – língua do povo mais inteligente do mundo –, veículo que conduziu através das turbulências da história “a metafísica natural do espírito humano”. É o caso do latim escolástico, seu herdeiro direto.
No momento em que o Concílio se recusou a utilizar a linguagem escolástica – pela qual o esforço natural do espírito humano, dedicado à busca da verdade, alcançou uma perfeição incomparável –, ele se desincumbiu do realismo de que a Igreja se encarregara até então. Não emborcou a garrafa para servir o vinho novo, senão o vento tempestuoso da subjetividade humana, cujas devastações presenciamos, horrorizados, na Igreja e na civilização cristã. Quando ele repudiou a língua – de cujos sinais se valem os conceitos – repudiou as coisas, e quando repudiou as coisas, mergulhou na subversão e na Revolução permanentes – para grande espanto dos padres, ou da maioria deles.
Bem que tentaram impedir essa ruína – com pudicícia denominada de “mentalidade pós-concilar” – que até os espíritos menos avisados poderiam prever. Como não encontrassem unidade na verdade, que é o objeto da inteligência contemplativa, os padres levaram o Concílio para o caminho da “ação”: apagam-se os desacordos quando se persegue um mesmo anseio. Por isso o Concilio se declarou estritamente pastoral, em contraste com todos os Concílios anteriores. Não proclamou dogmas – e nem poderia fazê-lo sem articular suas definições com os dogmas tradicionais e demonstrar sua impotência para definir, para se ajustar às essências, para utilizar como instrumento, sicut ancilla, a única filosofia que se harmoniza com a fé e cuja fecundidade a história da Igreja demonstrou.
Mas, como constatamos, a tentativa de circunscrever o Concílio como “pastoral” devia abortar. O “pastoral” é apenas um conjunto de regras de conduta destinadas a guiar o homem em direção ao fim sobrenatural; sua aplicação está a cargo dos pastores do rebanho. Contudo como levar o homem até o fim sobrenatural se ele não conhece o fim sobrenatural? A estratégia pressupõe o conhecimento do terreno: no caso, o homem inserido no mundo. A graça não abole a natureza, muito menos a substitui. Como o homem conheceria o fim sobrenatural se ignorava o lugar que ocupa no universo e a relação fundamental de sua inteligência com o real e o Princípio da realidade? O “pastoral” não pode abstrair a filosofia prática e a filosofia especulativa. Como recorrer às filosofias, já que a marca do nosso tempo – do qual o cristianismo deseja a todo custo sair – é ignorá-las e substituí-las somente pela atividade poética do espírito?
O “pastoral” não tinha escolha. Era e ainda é preciso que se torne uma atividade poética do espírito, fabricante do novo mundo, edificadora da nova sociedade, construtora do novo homem. O “pastoral” se tornou ou tende a se tornar revolucionário, subversivo e, à medida que projeta formas imaginárias na realidade, mistificador. Igualmente se tornou o álibi e a máscara da vontade de potência progressista e do teocratismo que não ousa dizer seu nome, dissimulando a pior das tiranias, da qual dizia Chesterton que toca n’alma com a clave do “amor”. (...)
A Igreja (pelo menos a que está no controle, monopoliza a informação e espoja-se na barafunda do aggiornamento), ao manifestar sem escrúpulos sua indiferença e desprezo pelo valor da verdade dos conceitos intelectuais e das fórmulas que os exprimem; ao romper o cordão umbilical bimilenar que a unia à filosofia aristotélica do senso comum – adentrou a velas enfunadas na ficção. Manifesta-o, por exemplo, o Novo Catecismo, aprovado pela unanimidade do episcopado holandês. A Comissão encarregada de examiná-lo assinala não menos que dezoito pontos principais, cujas concepção e formulação não correspondem às realidades de fé. As entorses menores ao dogma e ao sobrenatural são mais numerosas. Ora, os autores do dito catecismo não escondem que quiseram deliberadamente se desfazer do aristotelismo e do tomismo “superados”.
A primazia da atividade poética do espírito e, por conseguinte, da vontade de potência, parece universal na Igreja contemporânea – salvo as exceções numerosas quanto possível, contudo espalhadas, isoladas, desprovidas de meios de difusão abrangentes, às vezes reduzidas ao silêncio. Por onde se vá, quer-se “fazer alguma coisa”, transformar tudo. Nada escapa ao zelo dos novos reformadores, que impõem a todos sua jactância. Tal Igreja está assim impelida a competir com os sistemas políticos e sociais – já que vítimas da mesma doença –, quiçá a tomar o lugar deles. Como eles, assinala-se a Igreja com um selo artificial, pré-fabricado nos cenáculos e nos clubes. A nova forma segundo a qual a “pastoral” modela as almas, como o escultor a argila, é “o Reino de Deus” aqui embaixo – o inverso da ascensão, a exaltação da queda, o sim ao Tentador que oferece os poderes da terra a quem se prostre em adoração ante ele. Agora se compreende o significado profundo da palavra do bispo Schmitt: “A socialização é uma graça”, e das declarações numerosas e paralelas de tantos prelados que introduzem, conforme a admirável fórmula de Dietrich Von Hildebrand, “o Cavalo de Tróia na Cidade de Deus”, ao falarem da identidade entre comunismo e cristianismo.”
(Marcel de Corte, L'Intelligence en Péril de Mort)

Tradução de Luiz de Carvalho

http://traducoesgratuitas.blogspot.com/2010/09/marcel-de-corte-prefacio-de.html

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