sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Hannah Arendt e as contradições de Karl Marx


“É no estudo da utopia marxista que as contradições presentes no pensamento de Marx revelam-se. E isso é uma decorrência do fato de ter este pensador se rebelado contra a tradição e ficado, ao mesmo tempo, preso a ela. Para Arendt, encontram-se presentes, na obra de Marx, três proposições-chave, a partir das quais ele desafia algumas das principais verdades tradicionais: o trabalho (labor) criou o homem; a violência é a parteira da história e, finalmente, não se pode realizar a filosofia sem superá-la.
Implícitas na proposição de que o trabalho (labor) criou o homem estão quatro insurreições de Marx contra a tradição: foi o trabalho que criou o homem e não Deus; o homem cria a sua própria humanidade através do trabalho; o homem não é um animal rationale e distingue-se do animal não pela razão, mas, sim, pelo trabalho; e, finalmente, é o trabalho, a atividade mais desprezada pela tradição, que deve ser glorificado como o atributo máximo do homem. “Marx desafia assim o Deus tradicional, o juízo tradicional pelo trabalho e a tradicional glorificação da razão.”
Com a proposição: a violência é a parteira da história, Marx enaltece a violência, insurgindo-se, assim, contra a tradição, que acreditava ser a violência “a ultima ratio nas relações entre as nações”, a mais vergonhosa entre as ações domésticas e uma característica da tirania. Desafiava, também, a crença tradicional no discurso enquanto a forma mais humana de relacionamento entre os homens.
A identificação marxista da ação com violência implica em outro desafio fundamental à tradição, o qual pode ser mais difícil de perceber, mas do que Marx, que conhecia Aristóteles muito, deve ter sido cônscio. A dupla definição aristotélica do homem como um zôon politikón e um zôon lógon ékhon, um ser que atinge sua possibilidade máxima na faculdade do discurso e na vida em uma polis, destinava-se a distinguir os gregos dos bárbaros, e o homem livre do escravo. A distinção consistia em que os gregos, convivendo em uma polis, conduziam seus negócios por intermédio do discurso, através da persuasão (péthein), e não por meio de violência e através da coerção muda. [...] A glorificação da violência por Marx continha portanto a mais específica negação do lógos, do discurso, a forma de relacionamento que lhe é diametralmente oposta e, tradicionalmente, a mais humana.
O desafio de Marx à tradição, expresso na proposição de que não se pode superar a filosofia sem realizá-la, é o de que a filosofia deve concretizar-se no mundo dos negócios humanos, de tal forma que este “tornar-se-á um dia idêntico ao domínio de idéias em que o filósofo se move, ou de que a Filosofia, que sempre foi ‘para os eleitos’, tornar-se-á um dia a realidade do senso comum para todos”.
Para Arendt, cada uma dessas proposições contém uma contradição fundamental, quando é considerada a partir da sociedade idealizada por Marx. Se o trabalho criou o homem e é, entre todas as atividades, a mais humana, devendo, por isso, ser glorificada, o que acontecerá quando ele for abolido da sociedade utópica? Se a violência é a parteira da história e, assim, o fundamento da ação humana, que tipo de ação restará aos homens quando a utopia for realizada? Se a filosofia deve consumar-se na realidade e ser, assim, abolida, o que restará da atividade do pensamento, na sociedade socializada?”
(Eugênia Sales Wagner, Hannah Arendt e Karl Marx: O Mundo do Trabalho)

http://advhaereses.blogspot.com/2010/08/totalitarismos-comunistas-nao-foram.html

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