terça-feira, 30 de dezembro de 2014

A ação descristianizadora do Liberalismo (I)

"A palavra liberalismo tem uma diversidade de acepções, com freqüência não precisadas em sua possível conexão. O liberalismo econômico agora quase define a ideologia das atuais "direitas", que preferencialmente gostam de se chamar de "centro". Liberalismo, no mundo protestante, especialmente anglo-saxão, é sinônimo, no religioso e teológico, do modernismo condenado por São Pio X ou do atual progressismo. No século XIX era uma doutrina que se orientava à separação da Igreja e do Estado, e se realizava no reconhecimento obrigatório da igualdade de direitos de todas as confissões religiosas.
Aqui me ocuparei desta terceira acepção, que foi cronologicamente a primeira a difundir-se e que foi objeto de condenações pontifícias, sobretudo nos pontificados de Gregório XVI, Pio IX, Leão XIII e São Pio X. Pio IX deu-lhe o nome de laicismo e o condenou igualmente. Ora, tanto a palavra liberalismo como a de laicismo, neste sentido de relação entre o religioso e o político, estão praticamente reabilitadas e elaboradas positivamente, o que é um fator decisivo da atual confusão de idéias. Porque o liberalismo, entendido tal como a Igreja o condena, é contraditório com o que o Concílio Vaticano II, precisamente em sua declaração sobre a liberdade religiosa, nomeia como "a tradicional doutrina católica, que se mantém íntegra, sobre o dever moral dos homens e das sociedades para com a verdadeira religião e a única Igreja de Cristo" (Dignitatis humanae, núm. 1).
Buscando razões em defesa do juízo condenatório da Igreja sobre o liberalismo assim entendido, poder-se-iam aduzir muitos fatos que tornam patente o efeito profunda e extensamente descristianizador da política e da legislação liberais. Nesta mesma associação da Cidade Católica, e aqui em Barcelona, o professor Alsina analisou documentadamente a pavorosa decadência da vida religiosa e da fecundidade das famílias cristãs quanto às vocações sacerdotais e religiosas, que sucederam na Espanha como efeito da transição à democracia, com a passagem de uma legislação que proclamava o dever de regular-se segundo a doutrina católica à afirmação da completa "descatolicização" do Estado espanhol.
Vou-me ocupar, nesta ocasião, a raciocinar sobre o acerto do juízo da Igreja – recordemos que os juízos doutrinais não se derrogam pelo silêncio nem pela linguagem mais ou menos precisa com que se propõem questões no campo político ou sociológico – atendendo a uma fonte filosófica fundamental, inspiradora do Contrato social de Rousseau, orientadora do Iluminismo do século XVIII e que está na origem da "desconfessionalização" da sociedade política nos Estados Unidos: refiro-me à doutrina de Spinoza, o judeu holandês inimizado com a sinagoga de seu tempo e mais amigo dos cristãos liberais que eram os republicanos holandeses, opositores do calvinismo de Guilherme de Orange, o que "salvou" a Inglaterra do catolicismo e instaurou e reforçou a confessionalidade no Reino da Igreja da Inglaterra ratificada em seu protestantismo reformado, quer dizer, calvinista.
Bonifácio VIII promulgou uma bula das mais execradas e desprestigiadas, não só pelos inimigos de fora da Igreja, como também pelos de dentro, por todos os regalistas, galicanos e febronianos e, claro está, pelos católicos liberais. Leiamos o ponto de partida e a definição a que chega a bula de 18 de novembro de 1302:
"A fé nos urge e obriga a crer e manter e confessar que é uma a Santa Igreja Católica e Apostólica, fora da qual não se dá salvação nem remissão dos pecados, que é único o Corpo místico, cuja cabeça é Cristo, que é o Cristo de Deus, em cuja Igreja há um só Senhor, uma só fé e um só batismo" (DS núm. 870).
A conclusão que contém a fórmula definidora diz:
"Assim, estar submetido ao Romano Pontífice é absolutamente de necessidade para a salvação de toda humana criatura. Nós o declaramos, afirmamos e dizemos" (DS núm. 875).
No texto da bula se fala das "duas espadas", a espiritual e a temporal. "A primeira, exercida pela Igreja: a segunda, pelos reis e soldados. Porém, com o consenso e segundo a vontade do sacerdote. Pois é necessário que uma espada esteja subordinada à outra, e que a autoridade temporal se submeta à autoridade espiritual" (DS núm. 873).
O tema das duas espadas foi tirado da passagem evangélica na qual os Apóstolos, durante a Paixão do Senhor, aludiram ter "duas espadas". Segundo o magistral estudo do padre Francisco Segarra, esta argumentação e seu contexto não são o definido infalivelmente. O definido infalivelmente é o universal dever de obedecer à Igreja em tudo que é humano, fundado em que a Igreja é a única Igreja de Cristo.
O rei Jaime I da Inglaterra escreveu o tratado Contra a doutrina católica da autoridade pontifícia sobre os reis. O último ato de juízo condenatório de um rei, e declaratório de que seus súditos não lhe deviam obediência, por opor-se ele à Lei divina, é o de São Pio V contra a rainha Isabel da Inglaterra, em uma bula de 25 de fevereiro de 1570 (veja-se História dos papas, de Ludovico Pastor, versão castelhana, vol. XVIII, Barcelona, 1931, p. 180 ss.). Notemos que é o último papa canonizado anterior a Pio X e recordemos que os ingleses católicos não o receberam com adesão entusiasta. Em resposta ao rei Jaime, escreveu Suárez, em 1613, sua Defesa da fé católica contra os erros da seita anglicana com resposta à apologia a favor do juramento de fidelidade e ao Prefácio admonitório do Sereníssimo Rei da Inglaterra Jaime.
Nesta obra de Suárez, a questão decisiva é tratada em sua parte terceira. O rei Jaime defendia que, sendo o poder real de origem divina, era uma usurpação dos papas romanos pretender que tinham juízo e autoridade sobre o poder real. Suárez argumenta contra o rei Jaime partindo do princípio de que não podiam existir no mundo duas autoridades soberanas entre as quais não houvesse nenhuma ordem nem dependência de uma em relação à outra: "Ou a Igreja tem autoridade sobre os reis no que foi confiado à autoridade da Igreja ou, pelo contrário, dever-se-á reconhecer que a Igreja há de se submeter ao poder real". Se não se aceita a autoridade do Papa sobre os reis, deve-se aceitar a autoridade dos reis sobre a Igreja.
Na verdade, na hostilidade secular contra a doutrina de Bonifácio VIII estava subjacente a vontade de que o poder humano das autoridades dos estados não tivesse que reconhecer nenhuma dependência nem dever de obediência a respeito dos juízos morais que desse a Igreja sobre as leis e decisões políticas. Esta emancipação do homem diante de Deus, realizada a pretexto de independência do político em relação à autoridade religiosa, que foi amadurecendo desde o regalismo através do Iluminismo das monarquias do despotismo esclarecido, não teria no mundo sua culminação definitiva senão no Estado liberal. Na proposição vinte do Syllabus de Pio IX de 8 de dezembro de 1864, lemos:
"O poder eclasiástico não deve exercer sua autoridade sem permissão nem assentimento da autoridade política" (DS núm. 2920).
Na proposição trinta e nove encontramos condenado o seguinte princípio:
"O Estado da República (quer dizer, o Estado de origem democrática), enquanto origem e fonte de todos os direitos, goza de um direito não circunscrito por limite algum" (DS núm. 2939). Recordo que, nos tempos da ascensão do totalitarismo do Estado nazista, comentavam alguns que Pio IX se havia antecipado a sua condenação. O que na verdade fez Pio IX foi condenar muito explicitamente e com perfeito conhecimento de causa o liberalismo de seu tempo, que fixou o princípio que desde então não fez senão se consolidar e desenvolver em suas conseqüências. A democracia absoluta que agora se apresenta a si mesma como a única forma de poder humano de acordo com a natureza do homem se fundamenta em princípios filosóficos dos quais se deduz logicamente a absoluta independência em relação a Deus da vontade política dos homens.
Spinoza sustenta que "sempre que em um Estado se admita o exercício de uma autoridade independentemente do poder político haverá, necessariamente, divisão e luta, como ocorreu com os reis de Israel, aos quais pretendiam julgar os Profetas". E, a partir daí, sustenta que "só o poder político pode ser fonte da vida moral" e que "os que têm o poder soberano são guardiães e intérpretes, não só do direito civil, mas também do sagrado, e que unicamente eles têm direito a decidir o que é justo e o que é injusto, o que seja conforme ou não à piedade. Minha conclusão, finalmente, é que, de modo a manter o direito da melhor maneira possível e assegurar a estabilidade do Estado, convém deixar cada um livre para pensar o que quiser, e para dizer o que pensa" (Tractatus theologico-politicus, prefácio).
O Tractatus theologico-politicus de Spinoza foi escrito em 1670. Foi mais conhecido como o ponto de partida dos critérios metafísicos e epistemológicos que puseram em marcha a leitura racionalista e modernista da Sagrada Escritura, mas exerceu uma inspiração profunda no mais originário e autêntico do pensamento liberal. Parece muito provável que o verdadeiro criador do edifício político americano, Thomas Jefferson, aparentemente "unitário", era, em seu pensamento profundo, um discípulo de Spinoza, porque fazia já tempo que o unitarismo, que se apresentava como "negador da Trindade", havia evoluído na direção do monismo panteísta e naturalista que se havia expressado de forma tão explícita na obra do judeu não crente, mas "filósofo", Baruch de Spinoza.
Os católicos liberais do século XIX punham em dúvida o acerto e a justiça das condenações pontifícias sobre o liberalismo, e inspiraram praticamente a aceitação dos princípios liberais. Se tivessem analisado as fontes filosóficas do liberalismo, teriam compreendido o profundo acerto das condenações da Igreja.
Na verdade, o Estado moderno de inspiração filosófica deriva praticamente do panteísmo que, com formulações de um monismo estático spinoziano ou de um monismo dialético hegeliano, veio a reinar no Ocidente apóstata do cristianismo a partir da Revolução Francesa. A primeira proposição do Syllabus de Pio IX contém uma admirável síntese de todos os erros contemporâneos nesta sua dupla raiz spinoziana e hegeliana. A proposição condenada diz assim:
"Não existe Divindade alguma suprema e sapientíssima e providentíssima, distinta da universalidade das coisas, e Deus é o mesmo que a natureza das coisas, sujeito, portanto, a mudanças, e Deus, na realidade, se forma no homem e no mundo, e todas as coisas são Deus e têm a mesma substância de Deus; Deus é uma e a mesma coisa que o mundo, e, portanto, o espírito é o mesmo que a matéria, a necessidade que a liberdade, a verdade que a falsidade, o bem que o mal, e a justiça que a injustiça" (DS núm. 2901).
Se os católicos liberais tivessem analisado as fontes filosóficas do liberalismo, teriam podido perceber a razão profunda de sua devastadora influência descristianizadora. O venerável bispo Torras y Bages via a revolução liberal como o Contrato social de Rousseau posto em prática. Acertava plenamente, mas podemos acrescentar que o próprio Rousseau, em seu Contrato social, vem a ser um epígono de Spinoza, em todo o sistema de seu pensamento (exposto na Ethica, no Tractatus theologico-politicus e no Tractatus politici).
Desde o naturalismo integral de Spinoza, não tem sentido o livre arbítrio, a consciência do dever, do mérito e do demérito, ou do bem e do mal, pensados como distintos da utilidade ou do desejo ao qual o homem é impelido necessariamente pela natureza. Se proclamamos a necessidade natural de todas as operações do homem, nos livramos do sentimento de culpa pelo remorso. O próprio Freud é spinoziano. Um mistério presente no mundo contemporâneo descristianizado é a freqüência da linguagem moralizadora, condenatória precisamente do cristão tradicional e da ordem natural das coisas – do matrimônio monógamo e indissolúvel entre homem e mulher, da fecundidade contrária ao aborto, da conservação da vida contrária à eutanásia, de toda a autoridade na família e na escola – para cumprir literalmente a profecia bíblica: "Ai dos que ao bem chamam mal e ao mal, bem!""
(Francisco Canals Vidal, ¿Por qué Descristianiza el Liberalismo?)